A morte não é só GAME OVER

22-02-2012 13:37

Outro texto que escrevi, este sobre um assunto que me inquieta há muito, a morte, e o que está por detrás dela.

 

 

    Acorda. Acorda. Acorda! Gritava consigo própria tentando fugir do seu pior pesadelo. Já o tinha há vários anos. Sempre o mesmo. Sempre a mesma excitação, o mesmo desespero, os mesmos sentimentos a engoli-la até ela perder a racionalidade e gritar enquanto o chão se projectava cada vez mais perto de si. Não sabia se o chão estava perto ou não; estava escuro como breu, era como se a própria luz soubesse que o fim estava próximo e preferia impedi-la de ver o seu fim; simplesmente tinha de esperar até que o sonho acabasse com um grito.

    Normalmente assim que supostamente embatia o seu corpo leve e frágil no chão acordava de rompante , na cama a transpirar por todos os poros pensando ainda que tinha acabado de cair e estatelar-se. Acordava com medo, com a boca aberta num grito surdo. Era mais que um sonho, era uma promessa do que aconteceria. Todas as semanas o mesmo. Todas as semanas acordava alagada em lágrimas e suor, lágrimas de medo. Medo do que iria acontecer. Medo do escuro, medo de tudo.

    Naquele sonho ela não via nada; não conseguia tocar em nada, sentia-se vazia. Muitas vezes associava isto à morte. Para ela a morta não era simplesmente aparecer no ecrã a dizer "GAME OVER, MORREU", não. Para ela era algo muito mais profundo. Muitas vezes se perguntava o que era a vida, qual o sentido da vida, para onde iríamos nós após a morte. Certamente não era só viver uns quantos anos, morrer e desaparecer. O que iria acontecer à nossa mente? Ao nosso espírito? Ao nosso pensamento? Iria desaparecer? Era isso? Simplesmente fechava os olhos e deixava de pensar. Zummm. a mente fechava-se?

    Não conseguia, simplesmente não era capaz de o aceitar. Enchia-a de medo. Não podia ser. Tal como a aterrorizava o facto de algum dia algum familiar ou amigo próximo morrer. Não aguentava. Era.. impossível. Muitas vezes dava consigo a pensar na sua morte, ou na dos amigos e Na sua reacção com isso. Imaginava-se a chorar, a perder o mundo. E era isso que acontecia, chorava. E muito. Tentava então mudar de pensamento, para algo feliz. Mas não conseguia. Mais cedo ou mais tarde a sua mente voltava ao mesmo: à morte.

    Acorda. Acorda. Acorda! Não conseguia. Naquele dia era diferente. Sentia o ar a passar por si à medida que descia, cada vez mais naquele precipício sem fundo. Mas.. tinha de ter fundo. Ou era assim a morte? Seria assim? Cair, cair, cair e nunca se levantar? Como seria a morte? Não queria saber. Queria parar aquele momento e que nunca mas nunca morresse ninguém seu conhecido. Não queria que o tempo passasse. Assustava-a-a pensar que dali a uns vinte anos os seus avós já ali não estariam; já não ralhariam com ela. Era aterrorizador.

    O mais estranho de tudo.. Às vezes tinha uns pensamentos.. não, não eram pensamentos. Eram flashes, imagens. Imagens que a aterrorizavam, mas não as sabia identificar. Eram coisas assustadoras. Quando estava calada, silenciosa, tinha-as. Ou quando ia dormir. Não sabia o que eram. Eram.. coisas que a assustavam; identificava-as como morte também. Tinha medo.

    Naquele dia era diferente porém. Ia descendo cada vez mais. A pouco e pouco imagens surgiram na sua mente. Amigos, colegas, conhecidos, o namorado, a família, os seus animais de estimação, os seus professores. A sua vida passava-lhe à frente dos olhos. Ia morrer? Não, não podia. Tinha uma vida à sua frente.

    Tinha?

    Não, não tinha. Já era idosa.

    Era?

    Não, era nova.

    O que era ela?

    Uma criança com mente idosa? Uma idosa com mente de criança?

    Nada disso. Era ela mesma.

    Acorda. Acorda. Acorda! E ela acordou. Abriu os olhos com força. Não! Ainda estava no sonho. Seria um sonho? Ou era a realidade? Começou a pensar. Nada. Não conseguia pensar. Mas sabia.. por dentro sabia que aquele sonho era muito grande, grande demais. Sentiu-se a parar, o ar à sua volta a estabilizar. Tinha parado, sozinha  naquela imensidão de ar vazio, escuro, indolor, inodor. Não aguentava. Gritou. Nada. Gritou. Um som surdo. Nada. Não conseguia gritar.

    Fechou os olhos. Aquilo ia acabar. E .. lembrou-se.

    Tinha tomado comprimidos para domir, queria descansar. Estava farta dos sonhos; queria ter um sono profundo sem sonhos. Tinha deixado a lareira acesa, posto muitos pedaços de lenha para não arrefecer. Sentara-se a ver um filme na sala, aquecida pela lareira. Adormecera. Ninguém em casa. Janelas fechadas, estava frio na rua.

Somou dois mais dois.

Acontecera. Finalmente. Sabia o que lhe tinha acontecido. Tinha razão, os sonhos eram um prenúncio. Porque se deixara levar por eles? Se não o tivesse feito... Mas, para quê criticar? Estava feito.

Sorriu. Não podia perder agora. Morrera. E ali estava ela.

Começou a sentir uma dor no peito. O que se passava? Ouviu gritos. Chamaram-na. Não quis ouvir, o silêncio era melhor. Sentiu-se a ser puxada para cima.

Não! Queria o fundo. Ouviu gritos mais altos. Novamente dor. Não! Queria o fundo! Queria silêncio! Não queria nada mais!

O ar começou a movimentar-se. Viu-se a ser puxada. Para cima. Para a superfície.

Fechou os olhos. Sentiu uma lágrima a escorrer-lhe pela cara até terminar nos seus lábios. Passou a língua pelos lábios ressequidos e pensou na sua família. Como desejava ouvir a sua voz mais uma vez. "A minha filha... não...". A sua imaginação já lhe pregava partidas. Era isto a morte? Imaginar constantemente a voz das pessoas que amava? Desejou estar com eles, vê-los a sorrir, e beijá-la uma vez mais. Faria tudo diferente. Seria melhor pessoa.

Enquanto pensava o seu corpo ia sendo puxado a pouco e pouco para cima, para a ténue luz que começava a brilhar cada vez mais. Começou a ouvir ruídos, pessoas, máquinas, choros, gritos, e finalmente um apito insurdecedor que começou a apitar constantemente em vez de um só apito.

Abriu os olhos. Estava a sonhar. Era a imaginação. Viu a sua mãe ao fundo. Até a morte lhe dava sonhos? Ela olhou para ela. Estava a chorar. Profundamente. "Porque choras mãe?" a sua voz era rouca. A sua mãe não a ouviu. Olhou para cima. Um homem branco sorriu. Seria Deus? Deus não usa toucas brancas.

"Finalmente. Não sabes que não deves dormir com a lareira acesa? Estávamos a perder a esperança"

"Eu estou morta"

A sua mãe ouviu Deus. Veio a correr e abraçou-a enquanto a beijava.